domingo, 31 de agosto de 2014

PRODUÇÃO, PRESERVAÇÃO E TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO NO OCIDENTE - PARTE III

Como foi mencionado em postagem anterior, o texto "PRODUÇÃO, PRESERVAÇÃO E TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO" foi dividido em partes. A seguir as partes que versam sobre a participação das universidades na construção e transmissão do conhecimento e as preferências daqueles que se dispunham a ser os peregrinos do saber.
3 - A participação das Universidades na construção e divulgação do conhecimento
Se os mosteiros eram instituições eficazes para organizar o conhecimento num mundo em que o cristianismo dominava, por que surgiram as universidades?
A surpreendente recuperação econômica da Europa no século XII foi a responsável pelo primeiro período de mobilidade que explica o reordenamento do saber promovido pelas universidades.
No século XII em particular, o mosteiro passou por um período de grande florescimento. As universidades não surgiram para o substituírem.
Em um primeiro momento alguns conceitos devem ser estabelecidos. As universidades medievais eram profundamente diferentes das que conhecemos e nasceram de forma espontânea em torno de agrupamentos de professores e estudantes. Eles precisavam de lugares com infra-estrutura: alojamento, fornecedores de material (papel, tinta, canetas), locais em que pudessem se divertir, como tavernas e bordéis.
As universidades não tinham campus e prédios. O termo "universitas" era aplicado a um grupo de pessoas e poderia se referir a qualquer associação que se propusesse a algum trabalho com apoio mútuo e barganha coletiva contra os que não pertencessem ao grupo. Ex: associação de mercadores, de artesãos, de alfaiates, de curtidores.
As "universitas" de estudiosos eram compostas de: Mestres (professores), Artífices (bacharéis) e Aprendizes (estudantes). Num trabalho conjunto, mestres, bacharéis e estudantes estavam destinados a realizar um trabalho que conduzisse a treinamento vocacional, à época, para pregadores, advogados, teólogos e doutores.
Quando surgiram as Universidades? ("universitas" de estudiosos)?
Ao longo dos séculos XI e XII a Europa teve uma recuperação surpreendente depois dos golpes sofridos durante o declínio de Roma. Não só a produtividade agrícola aumentou. O comércio prosperou e a população começou a interagir com base em dinheiro e contratos. Juramentos e tradições já pertenciam ao passado.
Muitos homens jovens aproveitaram a prosperidade para viajar em busca de conhecimento. Eram verdadeiras peregrinações acadêmicas levando alemães a Paris para aprender Teologia, poloneses a Bolonha para estudar Direito, ingleses a Toledo para traduzir textos científicos árabes.
Foi tumultuado o período em que as "peregrinações acadêmicas" chegaram à Europa. Os estudantes tinham consciência de seu poder econômico, viviam em estalagens, não tinham quem se responsabilizasse por eles (parentes p. ex.) em suma não eram cidadãos europeus.
Sendo grupos muito numerosos, era comum surgirem desentendimentos entre eles, principalmente em horas de lazer após ingestão, quem sabe exagerada, de vinho. Muitas vezes a situação fugia do controle. Logo no início, em 1200, eram julgados por seus próprios mestres, situação definida por um edito real.
Por volta de 1215 foi decidido que para crimes mais graves (morte e estupro), seriam julgados por autoridades seculares.
Mas, em 1229, estourou uma rebelião novamente por causa do excesso de vinho num período de carnaval e o caso foi além dos limites, até para a indulgência real.
Esse fato levou a uma "grande dispersão". Muitos professores imigraram e universidades totalmente novas foram fundadas em Orléans, Toulouse e outras regiões. Alguns professores cruzaram o canal da Mancha e foram ampliar universidades já existentes em Oxford e Cambridge, conferindo àquelas cidades um lugar de destaque na história intelectual da Europa.
Durante esse período foram criadas "faculdades" para tentar garantir maior disciplina, melhor estrutura e apoio aos estudantes, muitos dos quais com apenas 14 anos, época em que iniciavam seus estudos formais.
Uma faculdade dispunha de um espaço físico próprio onde residiam alunos e mestres o que favorecia as relações cidade/ estudantes, já que eles ficavam alojados sob a vigilância dos mestres. Estes ficavam atentos a casos de embriaguez e violência procurando canalizar as energias para outro tipo de divertimento.
Muitas faculdades tiveram sua origem em instituições de caridade que ajudavam jovens pobres e promissores fornecendo-lhe alimentação e alojamento. A Sorbonne foi um exemplo disso e pode ser criada com uma doação de Robert de Sorbon.
A prosperidade da Europa durou ainda um tempo, mas sofreu um declínio em meio a rebeliões, guerras, fome, até que a Peste Negra de 1348, apesar de dizimar muita gente, de certa forma colaborou para o reerguimento econômico, graças ao empenho dos sobreviventes. Assim, a Europa se restabeleceu economicamente.
As universidades, àquela altura, (séc.XIV) já tinham um formato similar ao que conhecemos atualmente e, instalando-se em cidades pequenas, espalharam-se por todo o continente europeu.
Os estudiosos restabeleceram contatos com o mundo mediterrâneo que se estendia além da cristandade latina e, durante alguns séculos, continuaram se agrupando enquanto a Europa começava a se unir.
4 - As preferências dos peregrinos do saber
4 - 1   Teologia e Artes Liberais em Paris
Desde 1200, acadêmicos chegavam em número bem significativo à Île de la Cité e circunvizinhanças mostrando seu poder econômico e querendo se dedicar à Teologia e às Artes Liberais. (Île de la Citè) é o coração de Paris que, à época, era o centro internacional de Teologia.
Outros locais de peregrinação acadêmica criaram suas próprias escolas e áreas de especialização que serviram de modelo a ser seguido por muitas outras. Temos Bolonha (em Direito), Salermo em Medicina e muito depois, Praga em Artes Liberais.
As primeiras e mais importantes faculdades parisienses foram as das ordens religiosas mendicantes fundadas em 1216 : (os dominicanos e os franciscanos). Os frades dessas ordens pretendiam dar uma resposta religiosa aos desafios da mobilidade na Europa do séc. XII.
Seguiam uma regra (semelhantes aos monges). Faziam votos (obediência, castidade e pobreza) mas não se prendiam aos mosteiros e viviam pregando nas cidades em expansão, vivendo de esmolas e doações que recebiam. Daí o nome "mendicantes".
Quatro anos depois da criação da ordem, os dominicanos abriam uma faculdade de Teologia em Paris e, logo depois, em Bolonha.
Os franciscanos chegaram em 1218 com força total, superando a hostilidade à erudição, defendida por seu fundador (Francisco de Assis).
As ordens mendicantes amenizaram a divisão que havia entre escolásticos e monásticos, frades e mestres tradicionais e essa reaproximação lançou as bases para a elaboração sistemática e a prática da teologia.
Considerando que os livros da Bíblia já estavam reunidos num volume único, o que facilitava seu manuseio, e que cada livro que a compunha estava dividido em capítulos e ainda possuía as "Concordâncias" que identificavam as passagens mais difíceis e seus respectivos contextos, já dispunham de uma inovação intelectual para iniciar seu trabalho.
E, no rigoroso currículo de teologia que foi se consolidando em Paris, a busca da investigação racional ficou institucionalmente ligada e subordinada à tarefa de, junto à sociedade, fazê-la entender o significado de ser cristão.
Um dominicano parisiense, Tomás de Aquino (1225-1274) se dedicava a algumas questões intrigantes como :"Pode Deus fazer o que Ele não faz, ou não fazer o que Ele faz?". Analisava-as meticulosamente baseando-se na filosofia de Aristóteles. Aprimorou-se em teologia e escreveu a Suma Teológica que era o maior resumo de teologia da época.
A essa altura a educação universitária passou a ter nova mentalidade.
A concentração física, a segurança gerada pelo tamanho do grupo, a proteção real propiciaram a que os acadêmicos se dedicassem unicamente à busca do conhecimento.
A liberdade que os acadêmicos tinham em levar o conhecimento para onde quisessem permitia partilhar com outras universidades os mesmos currículos os mesmos livros e metodologias. Essa prática fez do estudo universitário, coroado pela tecnologia, a primeira forma de conhecimento internacionalmente reconhecido da Europa.
4 - 2   O Direito em Bolonha
A Universidade de Bolonha estava no pico da fama no século XIII. Com 10.000 estudantes suplantava Paris conhecida na Teologia e Artes Liberais, que tinha 7.000. Esse números eram extraordinários para a época.
A escola de Bolonha destacava-se no Direito tanto civil quanto canônico (as leis da Igreja). Era escolhida por razões práticas, utilitárias. O Direito preparava os estudantes para carreira nos tribunais, na diplomacia e na burocracia governamental, ou até a serviço a um bispo.
Quando chegavam a Bolonha como estrangeiros os intelectuais não tinham vantagens inerentes aos cidadãos locais. Sem a proteção básica estavam sujeitos a situações "delicadas" como, por exemplo, serem procurados com a exigência de pagamento de dívidas deixadas por concidadãos seus, uma prática conhecida como represália. Esses episódios os levaram a se unirem em defesa de interesses comuns como controle de aluguéis e isenção fiscal.
Bolonha possuía uma economia comercial forte, mas o poder de governo era deficiente, já que o imperador romano por razões inerentes à conquista de territórios nos Alpes alemães, e morando lá, dispunha poucos meios para governar.
Para ganhar a lealdade dos acadêmicos que se exilaram por amor ao conhecimento, o imperador assinou um decreto em 1158 garantindo-lhes segurança em seus trajetos pelas estradas, liberdade de não sofrer represálias e o direito de serem julgados por seus próprios mestres.
Na verdade Bolonha tinha duas "universidades" rivais, uma para mestres outra para estudantes, mas a economia e a política deram aos estudantes uma posição mais vantajosa. Naquela época, eram os estudantes quem pagavam aos professores. Esses estudantes tinham maturidade, poder de barganha para contratar e demitir professores chegando até a fazer greve visando melhorar condições. Os professores até pagavam multa se porventura se atrasassem. Se abandonassem os cursos ou se os deixassem incompletos, deveriam reembolsar os alunos proporcionalmente.
Ao final do século XIII, os mestres em Bolonha eram empregados assalariados da própria comunidade.
Apesar de todas essas circunstâncias a faculdade de Direito de Bolonha tinha um ótimo conceito nos níveis regional e internacional, particularmente no Direito Canônico.
4 - 3   A Medicina em Salermo
Sabe-se por documentos da época que a cidade de Salermo, no sudoeste da Itália era um famoso Spa medicinal na região mediterrânea já no início dos anos 900.
O ambiente era acolhedor: céus azuis, muitas palmeiras e brisas oceânicas atraíam os enfermos e os desanimados: esses mesmos atributos atraíam a comunidade de terapeutas e médicos eruditos que trabalhavam lado a lado de leigos práticos que vendiam ervas e remédios populares. Havia também mulheres que tinham sabedoria ginecológica e praticavam tratamentos que mais tarde foram transmitidos a (leitores homens) na Escócia e na Polônia através de textos "salernitanos" conhecidos como "Trotula" - um compêndio medieval de medicina feminina.
Não existia nenhuma escola oficial nem organização corporativa para credenciar ou proteger os vários curadores de Salermo. Todos competiam entre si, mas a comunidade médica tinha vitalidade, resultado do dinamismo urbano que precedeu a fusão formal das universidades.
Os médicos de Salermo sonhavam com a possibilidade de terem todos os tipos de medicina de todos os povos trabalhando unidos, já que muçulmanos, judeus e cristãos (católicos romanos e ortodoxos) passavam ali por mar ou por terra. Os salernitanos tiveram também acesso a Hipócrates e Galeno através de textos gregos que haviam sido revividos por continuadores islâmicos. (Galeno exercia medicina em Pérgamo e Hipócrates é o Pai da Medicina)
Vale lembrar que a bíblia da medicina medieval, o Cânone de Avicena foi escrito por um muçulmano. Avicena vem de (Ibn Sina em persa e árabe).
A Sicília e o sul da Espanha, dominados pelos muçulmanos eram lugares tão ricos de conhecimento médico e científico que atraíam cristãos dos mais longínquos pontos, inclusive da Inglaterra. Cidades como Salermo, Montpellier(hoje França) mas à época, submetida à coroa espanhola, Barcelona e Valença definiam um arco de cidades costeiras com o mesmo foco. Nessas cidades os praticantes da medicina desejavam se beneficiar da proximidade da tradição científica de alto nível existente no Mediterrâneo islâmico.
Quando Salermo perdeu seu destaque, Montpellier a substituiu, tornando-se a primeira cidade da Europa a possuir um corpo docente universitário no campo da medicina. Nessas cidades os praticantes da medicina puderam auferir os benefícios da proximidade da tradição científica de alto padrão no mediterrâneo islâmico. Os judeus, em particular, eram prestigiados mesmo em reinos cristãos e nomeados médicos da Corte. Além de exercerem sua profissão, eram consultados pelos reis a respeito de questões políticas; pelos tribunais que se apoiavam neles para provas judiciais e até a Igreja precisava deles ao analisar processos de anulação de casamentos. Os médicos estavam treinados por um método que atendia aos questionamentos verbais, podendo reagir rapidamente e convencer os leigos de seu conhecimento.
Para a medicina, teologia e direito, a exploração intelectual estava vinculada à utilidade social, quase uma pré-condição.
Os que lecionavam nos diversos tipos de universidades possuíam uma autonomia especial; estavam como que entranhados na sociedade já que serviam ao mundo que os cercava.
4-4  Praga e as Artes Liberais
A Universidade de Praga, criada em 1348 pelo imperador Carlos IV é a última das universidades verdadeiramente internacionais da época. Localizava-se na capital das terras checas e assim como ocorreu em Paris e Bolonha recebeu grupos formais de estudantes, "nações", conforme lugar de origem. Poucas vezes as nações correspondiam a divisões étnicas. Em Paris a nação "francesa" incluía italianos gregos e espanhóis e a nação "inglesa/alemã" abrangia todos os demais. O foco da Universidade de Praga era reproduzir o melhor que havia em Paris e Bolonha e parecia pronta para se destacar intelectualmente no continente europeu. Não havia inovações no currículo de Praga. A universidade funcionava como as anteriormente mencionadas (Paris e Bolonha) visando preparação básica para estudos sobre (gramática, retórica e lógica) num só bloco e também (aritmética, geometria astronomia e música) em outro bloco. Juntas, essas 7 artes liberais herdadas da Roma antiga são até hoje nominalmente reconhecidas nos títulos de bacharel em Artes e mestre em Artes.
Como em outras universidades europeias, os professores de Artes Liberais floresciam em Praga. As faculdades de Artes Liberais permitiam que seus mestres desfrutassem de acentuado grau de liberdade mas os checos reconheciam a pouca relevância das artes liberais como preparação para as ocupações no mundo real. Assim, em Praga, a maior parte dos mestres em Artes Liberais, em sua maioria checos, estava se preparando simultaneamente para o bacharelato em Teologia: lecionavam em algumas faculdades e financiavam seus estudos avançados em Teologia.
Os grupos de estudantes, "nações", eram adeptos da auto-organização em corporações que poderiam garantir a defesa de interesses comuns.
Considerando que estudantes de língua alemã representavam um contingente dominante na faculdade de Teologia (em cada quatro estudantes, três eram de origem alemã), por ocasião de decisão por voto, os checos não tinham muita chance.
Como os estudantes dos estudos avançados em Teologia se consideravam estrelas promissoras, começaram a se ressentir com a arrogância dos alemães. Esse ressentimento gerado por razões sociais teve um agravante (questões teológicas).
Alguns checos da Boêmia em viagem à Inglaterra tiveram acesso a escritos de John Wiclif (1324-1384), um teólogo oxfordiano que defendia uma religião mais pura, mais leiga e descentralizada. Afirmava que nenhuma instituição humana seria capaz de incorporar a perfeição espiritual exigida pela única verdadeira igreja de Deus. Para ele a tarefa de administrar o cristianismo cabia aos poderes seculares, o que chamava de "religião política". Baseados nessa justificativa filosófica os checos passaram a defender uma igreja nacional. A questão gerou um impasse quando em (1408-1409)a nação checa retirou dos alemães o direito de voto. Como eram (anti-Wyclif), os alemães retiraram-se em massa. Cerca de 1200 deles saíram de Praga e foram fundar uma nova universidade em Leipsig. Enquanto isso o checo John Huss, que defendia uma teologia alinhada a aspirações nacionalistas, entra em cena e passa a pregar aos checos a favor de uma igreja checa, na Capela de Belém em Praga.
O filho e sucessor do rei Carlos (Venceslau IV) ratificou os novos privilégios da nação checa.
Os cidadãos de Praga subsidiaram bolsas para estudantes universitários e criaram para eles uma faculdade ligada à Capela de Belém.
Não foi o melhor momento para essa decisão: "nacionalizar o ensino universitário". Muito menos abordar um assunto tão delicado como hierarquia católica romana.
A Igreja Católica Romana estava vivendo um momento muito delicado. Nenhuma instituição de cunho religioso ou secular falava em nome da cristandade latina. Um concílio foi convocado para resolver o impasse: o "Concílio de Constança" em 6 de julho de 1415.
O sonho do rei Carlos IV de fazer de Praga um novo centro no contexto intelectual do continente europeu não se realizou. A vinculação do contexto religioso à geografia social e política foi um entrave nesse processo.
A mobilidade acadêmica motivada pela expectativa de enriquecimento intelectual, que foi responsável pelo crescimento das primeiras universidades, se restringiu de forma drástica em consequência de sucessivas guerras religiosas. A Europa da segunda metade do século XV convivia com acadêmicos das mais variadas formações: protestantes expulsos da França católica, porém excepcionalmente letrados, missionários que iam para o interior ou para outros continentes com o propósito de atrair seguidores para a Igreja romana. Esses acontecimentos como um todo ameaçavam a cultura acadêmica internacional europeia que tinha como mote o diploma universitário, uma credencial válida em qualquer lugar e que agora apenas informava que aquele acadêmico conhecia bem uma ou outra das versões de mundos rivais.
Nessas condições de crise em que a religião politizada devastava a Europa surge uma comunidade internacional do saber que parcialmente complementava as velhas universidades. Era a República das Letras que não fazia distinção de origem, status social, gênero ou diploma acadêmico. Colocava-se acima de diferenças de idioma, nacionalidade e sobretudo de religião. Todos os seus membros eram considerados iguais e a admissão nessa comunidade não tinha protocolos mas a grande expectativa de que todos se empenhassem para uma convivência harmoniosa.
A República das Letras era vista como um empreendimento colaborativo que reunia estudiosos de toda a Europa e atendeu a muitas gerações possibilitando a recomposição do saber europeu. Alguns dos maiores pensadores do ocidente (Erasmo e Copérnico), (Descartes e Galileu ) participaram dela para aprimorar seus conhecimentos. Descartes definiu muito bem o aspecto colaborativo da República das Letras: "Com os recém-chegados começando onde os primeiros pararam e, desse modo, ligando as vidas e o trabalho de muitas pessoas podemos todos juntos ir muito além do que conseguiria cada pessoa individualmente."
República das Letras - seu perfil
A República das Letras era administrada pelos cidadãos que a compunham mas sua forma de cidadania não se apoiava em leis formais ou instituições. Era uma cidadania internacional. Qualquer pessoa que obedecesse as regras de conduta civil poderia a ela se vincular.
Era uma comunidade internacional do saber, inicialmente utilizando cartas escritas à mão enviadas pelo correio e depois, jornais e livros.
A ideia de enviar cartas tem origem antiga. Cícero, orador romano (106-43a.C), dedicava-se a estudos em sua casa de campo e à correspondência com amigos cultos sempre que lhe sobrava um tempo. Assim, aprimorava a mente e refinava sua oratória.
Na República das Letras não era usual uma comunicação pessoal entre os participantes. Muitas vezes se correspondiam durante muitos anos sem um único encontro.
Sobre o perfil dos integrantes percebe-se uma mescla de burgueses, aristocratas, mestres tipógrafos, educadores, integrantes da hierarquia da Igreja, missionários, jesuítas, ordens religiosas, pastores evangélicos e abades católicos. A "República" atravessava fronteiras e gerações.
Considerada um empreendimento de parceria acreditava num crescer ilimitado que ia além da tarefa de recuperar o "saber" já existente. Os eruditos do Renascimento escolheram a correspondência (cartas) como a melhor forma de registrar contatos intelectuais. Escrever cartas permitia "pensar localmente e agir globalmente ".
Como definiu Erasmo de Roterdã (1466-1536) "a carta é um tipo de troca mútua verbal entre amigos ausentes".
Havia cartas chamadas" múltiplas" que continham notícias as mais variadas. Cada parágrafo continha uma informação, às vezes, preciosa. Por exemplo, dados sobre fenômenos da natureza, eclipses, descoberta de estrelas, invenções como a do microscópio, em 1673, em Amsterdã.
Resumindo, a carta era um substituto da conversação cavalheiresca onde polidez, generosidade benevolência e especialmente tolerância eram virtudes presentes. Enfim, cartas testemunhavam troca de informações e uniam amizades intelectuais.
A República das Letras baseou sua legitimidade também na produção de novos conhecimentos. Graças a seu legado, a cooperação internacional continua a ser até os dias de hoje, uma característica da intelectualidade ocidental.
Intercâmbios cada vez mais frequentes entre países desenvolvidos promovem o avanço da Ciência, Tecnologia e Conhecimento do mundo atual. A publicação de teses de doutoramento e outras produções desses mesmos pesquisadores ajudam a compor a trama do saber.
Concluindo, a República das Letras foi constituída num momento de crise na Europa. Surgiu como uma instituição do Saber, de cunho alternativo, que parcialmente complementava a velha.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

PRODUÇÃO, PRESERVAÇÃO E TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO NO OCIDENTE - PARTE II




2 -    Os Mosteiros - Sua contribuição à construção e divulgação do conhecimento.

Na história do cristianismo, nenhum acontecimento desde a crucificação de seu fundador foi tão influente quanto a complacência do jovem imperador Constantino, em 312, com relação aos cristãos. Ofereceu-lhes tolerância cívica e restaurou propriedades que lhes foram confiscadas. Com sua mãe, começou a construir grandiosas igrejas. Todos esses fatos contribuíram para a multiplicação dos adeptos ao cristianismo. Quando Constantino morreu, em 337, o auge de Roma havia passado. A famosa cidade foi semidestruída em 410 e novamente em 455. Roma decaiu numa velocidade alarmante mas a última fase da história romana deu a bênção oficial ao cristianismo.
 Em 529 d.E.C um edito imperial fecha a Academia, fundada por Platão em Atenas, considerada relíquia da filosofia pagã, num mundo agora totalmente cristão.
No mesmo ano foi criado ao sul de Roma um mosteiro que até hoje está ativo. É o Monte Cassino localizado numa montanha extremamente alta próxima do epicentro do Império Romano Ocidental.
Contrariamente à imagem popular, o Mosteiro era, à época, uma instituição destinada a cuidar de manuscritos sem vida ao longo dos séculos, traduzindo-os para outras línguas, decifrando-os. Enfim, os monges se empenhavam com devoção, humildade e incrível paciência nessa tarefa que permitia a reinvenção e divulgação do conhecimento. É claro que tinham também suas tarefas de ordem pessoal, suas horas de meditação e leituras. O mosteiro foi a primeira instituição do saber que se adaptou à ausência de civilização, ao ermo.
Os mosteiros cristãos buscaram intencionalmente o afastamento da civilização urbana muito antes que ela entrasse em colapso. A palavra “monge” vem do grego "monachos" que significa "solitário" e ainda assim havia 5 mil deles somente no Baixo Egito no final do século IV. A ideologia que orienta o mosteiro, O Cristianismo, estrutura seu sentido de tempo em torno da vida e morte de Jesus Cristo. Para dar significado à história usam um conjunto de escrituras e outros tipos de literatura para orientar os indivíduos em suas decisões pessoais a respeito da vida, da morte e da salvação. Depois do colapso da infraestrutura da civilização no ocidente, a ênfase na palavra de Deus apresentou um fundamento lógico religioso para preservação do conhecimento. Sendo cristãos devotados, monges e freiras apoiavam-se em textos sagrados, ou não, para viverem melhor todos os anos de suas vidas nos mosteiros. Muitos deles faziam pesquisas não só em textos sagrados (os mosteiros tinham suas bibliotecas) mas também na natureza que os envolvia e daí resultaram experimentos que contribuiriam futuramente com o progresso da Ciência como o caso de Mendel (1822 - 1884) que entrou para o mosteiro com intenção de aprimorar conhecimentos e em contato com a natureza, admirando os jardins, acabou por fazer experimentos com ervilhas e descobrir os caminhos da genética. É considerado O Pai da Genética. Pode-se citar ainda Bartolomeu de Gusmão (1685 - 1724) - trabalho pioneiro no projeto de dirigíveis mais leves que o ar, Nicole Oresme (1320,1325 – 1382), filósofo famoso, matemático, tradutor competente, físico e teólogo; Giordano Bruno (1548 - 1600), filósofo dominicano, matemático e astrônomo, que foi queimado na fogueira por causa de pontos de vista heréticos; Nicolas Malebranche (1638 – 1715) - filósofo que estudou física, ótica e as leis do movimento; divulgador das ideias de Descartes e Leibniz; François Jacquier (1711 - 1788 ) - matemático e físico franciscano; por ocasião de sua morte estava conectado com quase todas sociedades científicas da Europa.
Na verdade, pode-se indagar por que a ciência se desenvolveu num ambiente católico.
Constata-se que os jesuítas deram inúmeras contribuições significantes para o desenvolvimento da ciência. Basta lembrar seu estudo sobre os terremotos, tanto que a sismologia passou a ser conhecida como a "ciência dos jesuítas". Também participaram do desenvolvimento dos relógios de pêndulo, telescópios, microscópios e muitos outros feitos.
Os mosteiros tinham suas regras que eram cumpridas pelos monges e que contribuíram para a construção de suas vidas de forma harmoniosa. A recitação das escrituras nos encontros semanais dava aos noviços solitários um sentido de companheirismo. A meditação sobre um versículo escolhido, a repetição de determinado salmo afastava o tédio, o desespero e a tentação. Os monges mais velhos estavam prontos a ajudar a comunidade e era comum serem procurados pelos monges mais novos e pelos noviços para ouvir uma palavra, um conselho. Era uma forma de tornar-se seu aprendiz. Os monges construíram suas vidas através da leitura meditativa que equivalia a uma prece a Deus.
Colaborou para disseminar os ideais de vida monástica e suas diretrizes, entre outros, João Cassiano (360 -433) que emigrou da Terra Santa para fundar dois mosteiros perto de Marselha.
Sua obra "As Instituições e as Conferências" foi responsável por disseminar os ideais da vida monástica juntamente com a Regra Beneditina que veio mais tarde.
Desde sempre o mundo conviveu com invasões, guerras e suas consequências drásticas.
Hoje vemos países que se digladiam por razões, às vezes estúpidas, e que além de um número enorme de mortes levam comunidades inteiras a se deslocarem de seus habitats para acampamentos em situações muitas vezes precárias, longe de suas origens e tradições.
Quando Roma foi saqueada em 410 pelos visigodos, o aparato político de seu império foi logo dominado pelos invasores gerando um colapso da cultura romana que perdurou por 2 séculos. A sociedade que surgiu após esse período era analfabeta, rural, subpovoada, tinha economia de subsistência e tradição oral, dominada por guerreiros em constantes conflitos, mas uma sociedade homogeneamente cristã.
O conhecimento necessário para entender as escrituras teria que vir de alguma fonte. A fonte que estava preparada para tal no Ocidente era o mosteiro, que não era algo novo no VI século. O sucesso do cristianismo e a preservação do conhecimento se deviam ao trabalho dos monges. Pode-se dizer que a religião apontou um caminho para a sobrevivência do saber.
Entre os muitos mosteiros existentes naquela época destacam-se:
Monte Cassino, fundado por Bento de Núrsia, que vem fornecendo a mesma diretriz durante séculos a monges e freiras beneditinas. Sofreu perdas significativas nas invasões em 577 e em 833, ocasião em que os monges tiveram que fugir, numa delas levando os ossos de Bento. Somente no século XI o Monte Cassino começou a adquirir e reproduzir manuscritos importantes da civilização do ocidente. Uma praga em 1348 e o terremoto de 1349 trouxeram outro revés que foi enfrentado pelos monges que sempre reconstituíram suas tradições e trabalhos. Seiscentos anos depois, em 1944, um bombardeio contra a Itália reduziu o local a escombros. Com a coragem que lhes era peculiar estavam preparados para cuidar da preservação do saber em tempos de devastação e penúria.
Recentemente, o convento de 1500 anos abriu seu próprio site www.officine.it/montecassino/ mostrando que se adaptou às mudanças do mundo e está conectado com ele.
Uma outra comunidade monástica que se destacou foi em Vivarium, palavra latina que significa "lugar de coisas vivas". Recebeu esse nome porque o local escolhido para sua instalação possuía lagoas piscosas em suas proximidades.
Foi idealizado por Cassiodoro, estadista romano que tinha um plano inicial de fundar uma escola cristã em Roma, mas violentas guerras no reino italiano destruíram seus sonhos. Retornou à vila da família em Squillace e se dedicou aos livros e escritos, reações comuns a aristocratas e estudiosos desiludidos. Depois transformou Squillace em uma comunidade monástica. Ali colecionou as grandes obras da antiguidade e treinou seus monges para copiá-las e corrigi-las. Cassiodoro alertou seus monges para que aprendessem com seus próprios olhos já que a tradição oral da cultura romana estava comprometida. Instruiu os monges a deixarem folhas em branco nos códices, na expectativa de poder acrescentar informações, recuperar obras perdidas. Além dos dois mosteiros fundados por João Cassiano pode-se destacar mosteiros na Gália e na Itália fundados e reformados por monges irlandeses conhecidos por sua austeridade e cultura. Saíram da Irlanda (uma ilha) e dirigiram-se ao continente para incentivar o conhecimento.
De Vivarium, na Itália, até Iona, no litoral britânico os mosteiros se destacaram e foram praticamente os únicos veículos da preservação da escrita e cultura do Ocidente desde o Séc. V atravessando o período entre os séc. VI e IX, considerado crítico para a divulgação de textos clássicos, até o surgimento da universidade no séc. XII